Autores: Inês Calor (CICS.NOVA, FCSH-UNL) e Mateus Magarotto (LEGECE-Universidade Federal de Pernambuco e CEGOT, Universidade do Porto)
O direito à habitação é consagrado pela constituição e pelos direitos humanos, contudo, no contexto neoliberal, a habitação não é apenas um lugar para “habitar”, mas sim um ou bem de consumo dinâmico e em constante mutação. Antes a distinção entre habitação primária e habitação secundária acarretava problemas de definição, o fenómeno do alojamento local veio acentuar de forma premente a necessidade de entender a habitação de uma forma mais flexível (e não estática, como tende a ser entendida pelos regulamentos urbanísticos). Perante a possibilidade de rentabilização pecuniária as mudanças no tecido habitacional são rápidas, profundas e com tendência a ignorar as regras estabelecidas. Será que o sistema de ordenamento territorial está preparado para a mudança de paradigma?
Perante um sistema de controlo urbanístico consolidado e rígido (com normas urbanísticas e necessidade de obtenção de licença para construção, alteração de uso, entre outros), os desvios às regras são óbvios e (re)conhecidos socialmente. O caso das construções ilegais na Ria Formosa (suspensas pela preservação do habitat do camaleão) mereceu recentemente grande atenção mediática. Nos jornais ou na vizinhança sobram exemplos de anexos, piscinas, muros e marquises ilegais. A transformação de anexos, sótãos e garagens/serviços/comércio para o uso habitacional com vista à rentabilização turística é hoje premente. À semelhança de outros países mediterrâneos, em Portugal os proprietários são audazes e a administração incapaz de lidar com a complexidade da situação.
Fig.1 - Cartaz de protesto contra demolições na Ilha do Farol (Inês Calor, 2016)
A plataforma Airbnb de aluguer de habitações veio tornar mais visível esta tendência de miscigenação de usos na habitação. Uma habitação primária pode ser transformada em habitação secundária e ocasionalmente arrendada para alojamento local. Este fenómeno acarreta também mudança sociais: jovens regressam à casa dos pais de forma perante ou temporária para alugarem a sua própria habitação, avós realocados para libertar as casas em localização conveniente e a escassez de casas e quartos com rendas acessíveis à população local é sentida nas principais cidades. Assim, em definitivo a habitação não pode continuar a ser entendida como um conceito estanque: o uso primário, secundário e turístico alternam no decorrer do tempo e da oportunidade.
A necessidade de habitação é muitas vezes referida como o principal argumento legitimador para a ocorrência de ilegalidades urbanísticas. Certamente será assim em países em desenvolvimento e entre uma camada social urbana desfavorecida. No entanto, os promotores desta transformação do território com tendência à “turistificação” é uma classe média com habitação própria. Importa por isso entender os motivos para a diversidade de transformações na utilização usufruto à habitação, em especial perante a ameaça contemporânea de desequilíbrio no acesso à habitação a preço acessível nas principais cidades do país.